Os Moinhos da Ribeira
“António Lopes, herdou de seu pai um terreno junto à Ribeira onde em tempos já tinha funcionado um Lagar de azeite da família. Maria de Jesus, a filha mais velha de José Lopes de 86 anos atualmente, recorda-se dele já muito degradado em pequena.”
Descrição sobre uma visita realizada ao local recentemente:
Existem ainda vestígios; ruinas desse Lagar que podem ser observadas atualmente. Verifica-se uma parede junto à ribeira ainda em bom estado de conservação, bicentenária, segundo José Acto Lopes. Na parte superior do terreno (em acentuado declive) notam-se alguns vestígios de uma bancada de moagem onde provavelmente, estariam as mós. Encontrando-se meio visíveis, tapadas pela vegetação, uma mó na vertical, outra no chão já quebrada, e um espaço com o que resta de uma talha de azeite.
Do lado oposto aos vestígios desse Lagar, encontram-se atualmente as paredes, sem porta e sem telhado dos Moinhos da Ribeira e uma casinha que servia de acolhimento aos animais de carga usados no exercício desta atividade; normalmente dois burros. Esta apresenta ainda resquícios de telhas e de uma porta, e está localizada logo à entrada do terreno, à esquerda, quando se começa a descer. De referir, a acentuada inclinação que o terreno apresenta até ao fundo, junto à Ribeira. O chão é bastante irregular e pedregoso.
Essa casinha está na parte mais elevada por uma razão muito específica apresentada por Maria de Jesus Lopes:
“Por causa do terreno ser muito inclinado e rochoso já era perigoso para os burros descerem, muito menos subirem carregados com os sacos da farinha. Dessa forma, essa casinha servia para os animais comerem, dormirem, descansarem e era nela que eram carregados até para proteção do material quando estava mau tempo”.
Os Moinhos estão localizados muito perto da ribeira, encontrando-se um mais abaixo do que o outro, aproveitando o declive a pique, separados por umas escadinhas escavadas de forma natural, ainda visíveis. Não apresentam quaisquer vestígios de mecanismos e/ou mós na altura utilizados, ao fim destes anos já desaparecidos. Os rodízios eram feitos em madeira – confirma José Acto Lopes.
Observa-se uma represa de tamanho considerável, colocada do lado mais elevado do terreno com a sua parede visível bem conservada ainda. Provavelmente ela já existiria em tempos antigos, mas foi restaurada ou melhorada por José Lopes..
“Mais acima, naquelas encostas existe um açude na Ribeira, uma queda de água natural na rocha, que já no tempo do bisavô havia sido acrescentado em altura para fazer o “ponto de água” necessário com o fim de fornecer a represa, e que formava uma espécie de lago, de onde corria a água tanto para ela, como para a própria Ribeira.”, conta José Acto Lopes.
“Perto, mas acima das casas dos moinhos, o meu pai fez a represa para reter a água e pôr a trabalhar as mós. Na parte mais funda tinha a altura de uma pessoa. A água da Ribeira enchia a represa, que vinha dum desvio que a própria água fazia, a que chamávamos ribeiro. Quando estava cheia, tapavam a entrada com uma espécie de comporta e assim a água seguia o seu curso, juntando-se à da Ribeira, mais abaixo. Quando precisavam de pôr a trabalhar os moinhos, abriam uma saída da água, que existia no fundo da represa. A água, seguia primeiro por uma calha em pedra distribuindo-se depois por duas de madeira, com vista a servir os dois moinhos. Havia um mecanismo que era uma roda com umas pás que ficava do lado de baixo de cada moinho. Por vezes, o meu pai e o meu avô dormiam nos moinhos da Ribeira, até terminar de moer a farinha.”, recorda Maria de Jesus Lopes e continua:
“Naquele local existiam muitos terrenos do Alqueidão cultivados, que pegavam com terrenos dos Montes. A própria Ribeira fazia uma divisão natural destas duas aldeias, com muitas hortas dos dois lados.” Tanto José Lopes como o seu pai cuidavam da horta que lá faziam, aproveitando a abundância de água e provavelmente o tempo que sobrava durante as moagens. A sua filha fala de algumas leguminosas e frutas;
“Na horta, o que se dava lá muito bem era feijão verde; feijão frade e feijão catarino; melões e melancias”.
Acerca da Ribeira fala ainda:
“Chovia muito o que fazia com que a corrente de água da Ribeira fosse muito forte, sobretudo de inverno. Em certos locais mais acessíveis, as mulheres aproveitavam para lavar as roupas, o que acontecia ao longo das suas margens e também no próprio local do açude.”
Existia um outro Moinho aproveitando as águas da Ribeira que pertencia a um familiar próximo da família Lopes, refere José Acto Lopes;
“Um irmão do meu avô António Lopes, que se chamava João Lopes casou para os Montes e fez um Moinho junto à Ribeira, mais abaixo. Era para si, para a família e servia também pessoas dos Montes. Teve um filho que herdou o mesmo nome do seu pai, sendo naturalmente nosso primo e que seguiu também a mesma atividade.”
Havia um caminho entre os Moinhos de água da Ribeira e a Azenha da Carrisca no rio Zêzere; um trilho que José Lopes fez pela necessidade de chegar mais rápido ao local do rio onde estava a Azenha, dado haver uma grande interligação laboral entre os dois locais, mas que no fundo toda a gente usava, nas palavras de Maria de Jesus Lopes:
“Fora já do terreno dos Moinhos e seguindo pelo caminho dos Montes, atravessávamos a Ribeira para o outro lado, pelo melhor sítio. Havia algumas pedras que ajudavam a passar e às vezes íamos descalços na água, pois normalmente não era muito profunda. Seguíamos depois, por esse caminho atravessando vários terrenos muitos deles de mato, até à azenha. Normalmente íamos entregar coisas que o meu pai e avô precisavam ou ajudar no que era necessário”.
A Azenha da Carrisca de José Lopes no rio Zêzere
Baseado nos testemunhos orais de Maria de Jesus Lopes:
O RIO, O AÇUDE E A AZENHA
“Antes da Barragem ser construída, o rio Zêzere podia ser atravessado de um lado ao outro em certos locais. Em alturas de menor caudal, também as crianças o podiam fazer. Nalgumas zonas a água dava pela cintura, noutros a profundidade era bem maior e até perigoso, tinham de ir a nado. Aprendiam muito cedo a nadar. Havia um açude que o meu pai tinha mandado fazer e todos os anos depois do mau tempo e das grandes enxurradas tinha de ser reconstruído. Era muito grande, atravessava o rio de um lado ao outro e ficava a uma boa distância da Azenha. Para o construir outra vez tinham de ir buscar pedras às margens para refazer a parede e os filhos mais velhos ajudavam também; íamos pelos terrenos de matos e rocha, muito íngremes, à procura de fetos (os verdes sustentavam melhor) para colocar nos intervalos das pedras. Quando os estragos eram maiores, o meu pai por vezes, tinha de falar a mulheres e homens para essa reconstrução, porque sem o açude a Azenha não podia funcionar.”
Sobre o local da Azenha, conta o seguinte;
“A zona onde estava a Azenha à beira-rio, chamava-se Carrisca e daí o nome da azenha. Do outro lado havia uma localidade que se chamava Maxial. Havia pessoas que atravessavam o rio para trocar os cereais, outras chamavam da outra margem e o meu pai ia busca-los e aos sacos. Esperavam depois pela farinha ou levavam a que havia para troca. Ele tinha pelo menos, dois barcos, por vezes pediam-lhe para atravessar para vir tratar de coisas do lado de cá.”
DESCRIÇÃO DA AZENHA DA CARRISCA
Maria de Jesus faz uma descrição interessante e pormenorizada de como era a Azenha:
“O terreno era muito inclinado e pedregoso com mato e estevas. A azenha tinha paredes de pedra construída com a ajuda do meu avô António Lopes, e o telhado era coberto de grandes tábuas de madeira. Quando a água era muita e começava a subir, tinham de tirar tudo de dentro da casa para não se molhar, só ficavam as mós que se tapavam sempre. As tábuas do telhado eram retiradas e resguardadas em barcos, para que não fossem nas enxurradas. Ficava sem funcionar até as mós secarem por completo. O meu pai prevenia-se preparando com tempo e antecedência, o resguardo de tudo o que podia, recebendo os conselhos do meu avô que o ajudava e trabalhava com ele. A azenha estava construída em cima da terra, mesmo à beira do rio. Tinha uma porta virada para o caminho do terreno e uma janela do outro lado, virada para o rio. O chão da azenha era feito de tábuas de madeira. No interior da azenha, do lado do rio, havia um alçapão no chão para terem acesso ao engenho, que se encontrava na parte de baixo da casa. Dentro da Casa, num dos cantos do lado do terreno, havia um espaço pequeno, preparado para acender uma lareira no Inverno, porque fazia muito frio.
Do lado de fora da Azenha, na parte de baixo, e mesmo junto à parede virada para o rio, havia uma roda na vertical, grande como a de Tomar, feita em madeira com travessas, encaixada num espaço entre paredes de pedra de cerca de 1 metro de altura e a todo o comprimento, que servia a água a essa roda quando se queria pôr a trabalhar as mós no interior da casa. Havia dois casais de mós e funcionava todo o ano.”
A CASA DOS BURROS
“Nesse terreno da Azenha, tinham construído uma casa mais acima e afastada do rio, que tal como nos Moinhos da Ribeira, também servia para abrigar os animais. Esta casa era muito maior e mais espaçosa que a dos Moinhos e com melhores condições. O processo era igual; os sacos da farinha eram transportados às costas, ora dos Moinhos, ora da Azenha, tudo a subir porque o caminho tanto de um, como de outro sítio, era muito a pique e perigoso para os animais subirem ou descerem carregados.
O meu pai gostava de cuidar bem dos animais e eram muito bem alimentados. A sua alimentação era sobretudo à base de milho, favas, rama de milho e feno. Costumava ir compra-los a Santa Cita. Alguns eram tão fortes que puxavam a carroça como uma mula ou um cavalo”
CURIOSIDADES:
Segundo Maria de Jesus, “O meu pai e o meu avô tinham animais de criação junto à Azenha. Ele construiu uma casinha para se abrigarem. Havia galinhas, galos e patos. De dia, andavam todos à solta. Os patos nadavam à beira do rio e as galinhas punham os ovos em ninhos, normalmente debaixo das estevas, mas em vários locais pelos terrenos à volta. Eu e os meus irmãos tínhamos de ir à procura deles para os recolher. Pescavam nas águas do rio Zêzere, o sável; a lampreia, o barbo e as bogas, destes peixes só as bogas havia todo o ano”.
Conta também, “que muitas mulheres iam lavar a roupa ao pé da azenha, numa zona de pouca profundidade. Lavavam, como era costume, em cima de pedras grandes e lisas do rio que escolhiam para o efeito. Geralmente, peças grandes entre outras; mantas muito pesadas de lã de ovelha ou as capas de linho dos colchões de feno. A roupa mais “miúda” costumava ser na Ribeira. Havia quem tivesse tanques grandes para lavar a roupa, junto a “noras” ou a poços com boas nascentes”.
A ATIVIDADE DE MOLEIRO – FREGUESES E FREGUESIA
Maria de Jesus fala um pouco como se processava a recolha e a distribuição dos talegos.
“No início, José Lopes chegou a ter dois homens que trabalhavam com ele no carrego dos sacos e que iam com os animais distribuir a farinha aos fregueses pelas localidades da zona. Abrangia uma grande área e era o Moleiro com mais atividade; palmilhavam localidades dentro e fora da Freguesia de Olalhas, tais como; Cepos, Carqueijal, Vendas do Rijo, Olalhas, Amêndoa ou Bogarrel e Casa Nova, entre outras. Na freguesia era o único a percorrer as localidades para servir os fregueses; o único da zona que tinha dois moinhos de água, mais o moinho de vento; não havia mais ninguém da Freguesia de Olalhas com uma azenha no rio. E foi o único a possuir depois, uma Moagem a motor e elétrica. Tinha muito trabalho nessa altura.
Havia pessoas que se deslocavam com os sacos para moer o grão, tanto aos Moinhos, como à Azenha e esperavam para levar a farinha. Outras aguardavam nos locais onde moravam, pela chegada do burro que vinha carregado de talegos, e ora entregavam os sacos para moer, ora levavam já os sacos com a farinha, conforme o caso. A maior parte das vezes, era de um dia para o outro a entrega. Por isso, todos os dias eram percorridos esses caminhos, muitas vezes íngremes ou de difícil acesso para se chegar a todos os Fregueses, fizesse bom ou mau tempo, de Verão ou de Inverno.”
A INTEGRAÇÃO PRECOCE DAS CRIANÇAS EM ATIVIDADES LABORAIS
As crianças mais velhas de oito, nove ou dez anos já estavam inseridos também nessa atividade. Mas bem cedo começavam a ajudar em pequenos trabalhos diários e na agricultura. Eis o que diz sobre isso Maria de Jesus:
“As crianças logo pequenas de 5-6 anos iam aprendendo sobre o trabalho nas hortas; a regar, a fazer as sementeiras, a sachar, a apanhar azeitona. As raparigas a levar coisas à cabeça, os rapazes às costas. Semeavam o milho, levavam-no para a eira para ser descamisado, entre outros afazeres agrícolas. Aqueles que já andavam na escola, quando chegavam a casa tinham de ajudar também. Os mais velhos cuidavam dos mais novos. Todos trabalhavam conforme as suas idades e capacidades.
O meu irmão mais velho António Lopes, faltava muito à escola para ajudar o avô e o meu pai. Ele começou cedo a ensina-lo a ir com um burro carregado de talegos de farinha aos fregueses, por vezes sozinho, na maioria com uma de nós, eu ou a minha irmã São (Conceição Soeiro) Mesmo depois de já existir a Moagem que o meu pai tinha construído, depois da Barragem de Castelo do Bode, ainda íamos pelos lugares e aldeias, buscar o grão e levar as trocas da farinha.
Quando éramos pequenos, a comida e as roupas ficavam a cargo da minha mãe e da minha avó Mila (Emília Soeiro) mas quando já tínhamos nove ou dez anos, as raparigas mais crescidas ficavam encarregadas delas e também da limpeza da casa, sobretudo ao sábado, depois do trabalho do campo, ao final da tarde. Tanto os rapazes, como as raparigas íamos todos os dias buscar água para fazer a comida, para beber, para nos lavarmos e dar aos animais. De verão ou quando havia menos água, levantávamo-nos muito cedo, cinco ou seis da manhã para ir à Fonte do Mexiel, ou a da Ferrugenta, as raparigas com cântaros à cabeça.”
A MOAGEM ELECTRICA DE JOSÉ LOPES (baseado em testemunhos dos descendentes)
A Moagem ficou finalmente montada e pronta a trabalhar, uma casa independente anexada à sua residência no Alqueidão. Foi construída de raiz para essa função. Já não havia a azenha no rio, entretanto submersa nas águas do Rio Zêzere. Ele tinha encontrado uma solução mais moderna e também aquela que se começava a usar – a Moagem a motor. De início trabalhava a gasóleo. Quando a eletricidade chegou à aldeia, introduziu mais essa novidade na casa da moagem e ele próprio teve de se adaptar às novidades que isso exigia. José Lopes desdobrava-se então entre a Moagem elétrica, os Moinhos da Ribeira e a agricultura, que nunca prescindiu. A sua esposa Damiana de Jesus, passou também a cuidar do negócio quando ele não se encontrava, porque os fregueses começaram a deslocar-se à Moagem na aldeia. Uma casa aberta. Vendia e trocava a farinha. O seu marido ensinou-a a pesar os sacos de farinha na balança, o valor dos pesos, e a retirar a Maquia, que representava o valor do trabalho realizado pela moagem do cereal.
José Lopes pagava contribuição pela atividade e a Casa da Moagem era sujeita, como é natural, a inspeções periódicas para aferição das mós, dos pesos da balança e da maquia. De referir que o trabalho de recolha e distribuição dos talegos de farinha pela Freguesia com os burros ou com a carroça, continuou até haver fregueses ou a idade o permitir.
José Acto Lopes, o seu filho mais novo, ainda o acompanhou nesta atividade até à sua ida para o Serviço Militar em 1070. Por isso lhe restam tantas memórias desses tempos e desse trabalho.
Tempos de mudanças e transformações profundas faziam-se sentir por todo o lado. A maioria dos seus filhos tinham começado a sair de casa gradualmente para trabalhar e viver em Lisboa, ou fora do país.
José Lopes, ao idealizar a construção da Moagem que viria a ser elétrica, revelou a sua faceta visionária, de luta e empreendedorismo, arriscando na mudança e na transformação, ao melhorar e modernizar a sua atividade, acompanhando os novos tempos. Não se deixou abater pela perda, numa atitude de resiliência e superação.
Deixou à sua maneira e indelevelmente, como tantos outros da sua geração, um legado único e pessoal não só a nível familiar como também à comunidade onde vivia, pela importância de serviço público essencial que a sua atividade moageira representava e que de forma tão persistente e dedicada ofereceu.
Maria de Fátima Lopes Correia de Carvalho Branquinho